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Seminário discute preservação da matriz africana no combate ao racismo

Rio de Janeiro

Akemi Nitahara – Repórter da Agência Brasil

Experiências internacionais de valorização e preservação da memória e da matriz africana nas Américas foram apresentadas hoje (27) no seminário Mauá 360 – Cais do Valongo, que ocorre no Museu do Amanhã, dentro da semana Vivências do Tempo – Matriz Africana.

Uma das experiências é o museu Smithsonian National Museum of African American History and Culture (NMAAHC), criado por ato do Congresso dos Estados Unidos, em 2003, e inaugurado em setembro de 2016, em Washington. Dedicado à valorização da cultura e memória afro-americana, a coleção conta com mais de 36 mil artefatos.

O curador do museu, Paul Gordullo, disse que falar sobre escravidão é uma coisa tão recente nos Estados Unidos quanto no Brasil. De acordo com ele, é necessário discutir a questão para se compreender melhor a herança africana compartilhada por todas as Américas.

“São histórias parecidas, de perdas, coisas escondidas. Colocar os objetos em um museu tem feito essa história visível e tem colocado luz sobre os pontos escuros. Muitas pessoas tinham receito de falar sobre isso antes, mas nós damos voz para a história. A melhor forma de fazermos isso é encontrar os objetos que contam a história dessas pessoas. Muitas vezes são fragmentos que precisam ser conectados. Precisamos abrir a janela e pensar sobre a escravidão, recuperar os objetos e a humanidade disso, personalizar faz toda a diferença. Eram pessoas com grandes histórias, quando personalizamos e colocamos em um museu ajudamos todos a perceberem isso”.

Para Gordullo, o museu também tem a função de ser espaço para conversa, aprendizado e debate, onde as pessoas tomam coragem para falar sobre assuntos que não falariam em outros lugares, como o racismo e a exclusão social.

“Eu acho que isso é um trabalho crucial dos museus, para entender nossas histórias, e que a sociedade contemporânea é conectada a esse passado que a escravidão tocou 200 anos atrás. Nós somos conectados, temos que pensar localmente em cada cidade e nas conexões, porque o mundo é uma rede. Se entendermos que as comunidades locais são conectadas com as globais, temos uma chance de fazer do mundo um lugar melhor”.

Patrimônio Mundial

O evento ocorre às vésperas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) anunciar se o Cais do Valongo, por onde se estima que tenham desembarcado no país cerca de 1 milhão de africanos escravizados, receberá o título de Patrimônio Mundial. O anúncio está previsto para ser feito no dia 7 ou 8 de julho.

Para Paul Gordullo, o Cais do Valongo tem uma importância global significativa. “Contém artefatos que nunca foram relatados nos livros de história. Mais de 90% da história humana foi perdida, esquecida ou mesmo assassinada e oprimida, sendo propositalmente esquecida. No Valongo, nós precisamos recuperar os objetos que contam a história dessas pessoas e suprir o silêncio que a história deixou”.

O antropólogo Milton Guran, que coordenou o grupo de trabalho da candidatura do Sítio Arqueológico Cais do Valongo, lembra que o Rio de Janeiro foi o maior porto escravagista da história.

“A redescoberta do Cais do Valongo permite, impulsiona, praticamente nos obriga, a nos confrontarmos com essa realidade. Obriga a cidade do Rio de Janeiro e, por extensão, o país, a se confrontar com as suas origens. Não é por nada que nós temos a maior população negra fora da África, a segunda população nacional negra do planeta, depois da Nigéria. Nós temos que assumir isso de forma consequente, que esse país se viabilizou porque contou com a mão de obra africana em todos os níveis. E isso é positivo, nós temos uma nação pluri étnica, multicultural”.

Ele explica que a elevação do local a Patrimônio Mundial pode colocar o Brasil na vanguarda das políticas públicas globais de inclusão social e redução das desigualdades, que já vinham caminhando com leis como o ensino obrigatório da história da África nas escolas e as cotas raciais para ingresso nas universidades.

“O Brasil vai assumir um protagonismo a nível mundial dessas questões, que não tratam apenas de um passado que ficou esquecido, porque o passado é importante e não pode ficar esquecido, porque o tráfico negreiro foi um crime contra a humanidade, mas a gente tem que pensar o presente e o futuro. O que se coloca em discussão é inclusão social, são políticas de reparação. A gente fala muito em liberdade, mas entre as dez maiores economias do mundo, o Brasil é o que tem o maior número de pessoas em trabalho análogo à escravidão, é o que tem a maior população carcerária proporcionalmente, e 70% dessa população carcerária é negra”.

Segundo a antropóloga do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) Rosana Najjar, o Cais do Valongo já é registrado como sítio arqueológico nacional e o reconhecimento internacional é importante para dar visibilidade à história e fazer com que os entes federativos assumam a responsabilidade de manter o local preservado.

“Poderia ter sido enterrado de novo, porque você preserva enterrando. É uma capsula do tempo, ele ficou lá quietinho 200 anos até que a gente redescobrisse. Então essa responsabilidade, sendo ou não Patrimônio da Humanidade, é uma responsabilidade do poder público. A tomada de decisão de deixar aberto foi conjunta. Independente de Patrimônio da Humanidade, ele é um patrimônio arqueológico, é legalmente protegido como patrimônio cultural brasileiro”.

Museu da Escravidão e da Liberdade

Ao falar sobre a criação do Museu da Liberdade e da Escravidão, a ser implantado também na região portuária (1), a secretária Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, Nilcemar Nogueira, anunciou que os princípios do novo espaço serão discutidos com a base social do movimento negro. Uma oficina está prevista para os dias 14 e 15 de julho, no Museu de Arte do Rio (MAR), na Praça Mauá. Nilcemar destacou a importância de se “conhecer o passado para efetivamente entender o presente” e o papel que o museu pode ter.

“O museu se encontra em posição privilegiada para articular questões essenciais para a sociedade e encorajar reflexões críticas sobre os legados que o dão forma ou dilaceram. Em especial, trataremos da história e do legado da escravidão no Rio de Janeiro e no Brasil, bem como do legado e da contribuição da cultura de matriz africana para a cultura e sociedade brasileira”.

Ela disse que o nome do museu ainda é provisório e a questão será discutida com a comunidade, mas adianta que o espaço também celebrará a cultura afro-brasileira e será vetor de promoção de autoestima.

Segundo a secretária, a escritora Carolina Maria de Jesus dará nome ao centro de referência do novo museu. A sede administrativa será no Centro Cultural José Bonifácio, na Gamboa, palacete fundado em 1876 por D. Pedro II e que sediou a primeira escola pública da América Latina.