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Estado e fé: STF permite ensino confessional de religião nas escolas

Com ‘voto de minerva’ da presidente da corte, ministra Cármen Lúcia, o Supremo Tribunal Federal decidiu nesta quarta-feira pela permissão de ensino religioso confessional nas escolas públicas.

Em votação apertada – 6 votos a 5 – o tribunal rejeitou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439, que pedia que o ensino religioso fosse apenas uma apresentação geral das doutrinas e não admitisse professores que fossem representantes de nenhum credo – como um padre, um rabino, um pastor ou uma ialorixá (mãe de santo).

Na prática, as leis brasileiras permanecem como estão, e fica autorizado que professores de religião no ensino fundamental (para crianças de 9 a 14 anos) promoverem suas crenças em sala de aula. Mas também continuam autorizados o ensino não confessional e o interconfessional (aulas sobre valores e características comuns de algumas religiões).

Os Estados e municípios também continuam livres para decidir se devem remunerar os professores de religião ou fazer parcerias com instituições religiosas, para que o trabalho seja voluntário e sem custo para os cofres públicos.

Atualmente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional prevê que as escolas ofereçam obrigatoriamente o ensino religioso para crianças. No entanto, a disciplina é facultativa, e os alunos só participam se eles (ou seus responsáveis) manifestarem interesse.

Mesmo assim, a Procuradoria-Geral da República argumentou que, por não determinar se as aulas podem ser confessionais (ligadas a uma confissão religiosa) ou não, a lei dá espaço para que predomine o ensino da religião católica nas escolas municipais e estaduais – o que violaria o princípio de que o Estado é laico.

Mas no julgamento, que começou em agosto e foi retomado nesta quarta-feira, seis ministros da Corte (Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia) entenderam que a laicidade do Estado não significa que ele deve atuar “contra” religiões, mesmo nas instituições públicas.

A favor do pedido da PGR votaram Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Rosa Weber, Marco Aurélio Melo e Celso de Mello.

No “voto de Minerva”, Cármen Lúcia argumentou que não via, nas leis brasileiras, autorização para o proselitismo e para o catequismo nas escolas. Ao mesmo tempo, disse também não ver proibição de que se ofereça ensino religioso orientado por princípios de uma denominação específica.

Ela afirmou, no entanto, que todos os ministros estão de acordo com “a condição de Estado laico do Brasil, a liberdade de crença, a importância da tolerância, a pluralidade das ideias e a garantia da liberdade de expressão e manifestação”.

O debate pôs, de um lado, associações católicas e evangélicas e, de outro, órgãos tão díspares quanto a Federação das Associações Muçulmanas e a Liga Secular Humanista do Brasil.

Limites

Na primeira sessão do julgamento, Barroso (que é relator da ação), Fux e Weber concordaram com o argumento da Procuradoria de que o ensino religioso, mesmo que facultativo, pode expor crianças a constrangimentos, caso elas escolham não frequentar as aulas, por exemplo.

Esta também é a posição da maior parte das associações de educadores, ONGs de direitos humanos e congregações religiosas que pediram para que seus argumentos fossem ouvidos pelo tribunal.

“Defendemos que o STF estabeleça limites negativos à presença do ensino religioso nas escolas públicas, limites do que não pode ser”, disse à BBC Brasil Denise Carreira, relatora nacional de Direitos Humanos da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHesca), ligada à Unesco (órgão da ONU para a educação, ciência e cultura).

“Entre outros, que não podemos ter matrícula automática na aula de religião, que hoje é o caso em muitas redes de ensino. A família que não quer tem que passar por um procedimento longo para tirar a criança. Também defendemos que o ensino religioso não pode ser oferecido em horários de disciplinas obrigatórias – aulas no meio período, por exemplo. Muitas escolas fazem isso para forçar a barra.”

Para Carreira, o STF deveria ir mais longe. Além de definir o tipo de ensino religioso que deve ser oferecido às crianças, também deveria discutir se este deve ser custeado pelo poder público, como a lei atual permite. “No momento em que o país está, com a dificuldade da implementação do Plano Nacional de Educação por falta de recursos, não tem cabimento investir dinheiro público em ensino religioso”, afirma.

Túlio Vianna, professor da faculdade de direito da UFMG, advogado que representa a Liga Humanista Secular do Brasil (LHiS) – que congrega pessoas sem religião (como agnósticos e ateus) -, acredita que ação da PGR buscava, de certo modo, corrigir uma contradição dentro da própria Carta Magna.

“Ao prever o ensino religioso, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação quase prevê uma exceção dentro da regra da laicidade do Estado. Então isso precisa ser interpretado de forma restritiva. Ou o Estado financia uma espécie de catecismo em sala de aula ou oferece uma disciplina que daria ao aluno uma visão geral das várias religiões. Sem proselitismo. Isso nos parece mais de acordo com a visão que a Constituição de 1988 consagrou”, disse à BBC Brasil.

Do outro lado, o advogado da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), Fernando Neves, enfatiza que a Igreja Católica – defensora do ensino confessional – não quer necessariamente um “catecismo” nas escolas públicas.

“Defendemos o ensino de todas as religiões, como a Constituição diz. Por exemplo, aulas de religião na sexta-feira, no último horário. As crianças manifestariam sua preferência e as próprias congregações religiosas se encarregariam, como parceiras das escolas, de mandar seus representantes voluntariamente para dar aula”, disse à BBC Brasil.

“Pode-se falar da história e dos valores das religiões em aulas de história e filosofia, sem privilegiar nenhuma delas. Mas ensino religioso é aprimoramento em determinada fé. Claro que a CNBB quer que todo mundo tenha aula da religião católica, mas admite que possam existir pessoas que queiram religiões africanas, das evangélicas, do judaísmo.”

No Censo 2010, 64,6% dos brasileiros se declararam católicos e 22,2% protestantes (o que inclui igrejas evangélicas tradicionais, pentecostais e neopentecostais). Mas também há espíritas, testemunhas de Jeová, seguidores de religiões de matriz africana como candomblé e umbanda, budistas, judeus, muçulmanos, baha’í, seguidores do Santo Daime e outros.

Como garantir que todas elas possam estar representadas, mesmo sob demanda, na grade curricular?

“Reconheço que essa dificuldade possa existir, mas depende de as congregações mandarem as pessoas para as escolas. Dificilmente elas terão todas essas aulas, mas depende de cada região. Na Bahia, por exemplo, onde há influência maior das religiões africanas, pode ter mais aulas delas. Ou até uma disciplina interconfessional, de currículo combinado entre duas religiões”, sugere Neves, da CNBB.

“Não posso imaginar que isso fomente a discriminação e, sim, ensine a tolerância. Se você tem seis classes no mesmo horário, cada um indo para onde quiser, isso ajuda. Quem não quiser vai jogar bola, vai para casa mais cedo.”

Associações cristãs defendem que ensino confessional ensina valores morais a crianças, mas juristas temem aumento da intolerância (Direito de imagemGETTY IMAGES Image caption )
Associações cristãs defendem que ensino confessional ensina valores morais a crianças, mas juristas temem aumento da intolerância (Direito de imagemGETTY IMAGES
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Quem paga?

A ideia de que as escolas públicas consigam manter diversas aulas de religiões diferentes, no entanto, é vista como utópica por outros especialistas.

“Nossas escolas já não têm salas suficientes para todo mundo. Imagine se no dia do ensino religioso tiver pelo menos cinco ou sete aulas diferentes? E como será o pagamento desse pessoal se for pelo poder público? Continuamos dizendo que o melhor lugar para a defesa do ensino religioso é na sociedade civil. As igrejas têm televisões, Twitter, têm as famílias, as igrejas, os templos”, disse à BBC Brasil Carlos Roberto Jamil Cury, professor da PUC-Minas, ex-membro do Conselho Nacional de Educação e um dos principais especialistas legislação educacional no país.

Já Túlio Viana, da Liga Humanista, diz que seria impossível, a rigor, manter o ensino religioso sem o dinheiro do contribuinte.

“Mesmo com parcerias, as aulas não seriam gratuitas. Há o aluguel do prédio público, eletricidade, água, limpeza, estrutura onde as aulas serão dadas. O Estado acaba pagando de qualquer forma. Isso viola a laicidade do Estado”, afirma.

Cury relembra que a Lei de Diretrizes de Bases da Educação de 1996, em seu artigo 33, deixava claro que o ensino religioso nas escolas fundamentais poderia ser confessional, de acordo com as preferências dos alunos e de suas famílias, mas que ele não deveria ser custeado pelos cofres públicos.

Sete meses depois, no entanto, o artigo foi alterado e deixou de mencionar tanto o ônus ao poder público quanto o ensino confessional. Atualmente, ele diz apenas que é proibida qualquer forma de proselitismo religioso e que o conteúdo das aulas e as normas para a admissão dos professores devem ser regulamentados pelos sistemas de ensino.

Com essa mudança, diz o especialista, abriu-se o espaço para que municípios e Estados pagassem a conta dessas disciplinas – e as oferecessem da maneira como quisessem.

“Eu estava no Conselho Nacional de Educação na época. Não conseguimos dar orientações aos Estados e municípios, então ficou livre para que eles assumissem ou não esse ônus. Em muitos Estados, já havia uma tradição vinda do regime militar de remunerar os professores de religião”, diz.

Catolicismo ‘e outras’

Hoje, segundo Cury, a maior parte dos Estados brasileiros custeia aulas de religião nas escolas públicas – em muitos casos, disciplinas ligadas a uma religião específica, geralmente cristã.

Soma-se a isso o fato de que, em 2010, o Brasil assinou um acordo com o Vaticano (Decreto 7.107/2010), que previa o “ensino católico, aberto também a outras confessionalidades” para crianças do ensino fundamental. A ação da PGR também pedia que o STF considerasse esta parte do acordo inconstitucional.

“O acordo assinado do Brasil com o Vaticano é inferior, superior ou igual à Lei de Diretrizes e Bases? Eu acredito que é inferior. A Constituição está acima de um acordo assinado com uma só denominação religiosa”, afirma o jurista.

Mas para o presidente da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure), Uziel Santana dos Santos, professor da Universidade Federal de Sergipe, seria “ingratidão” impedir o ensino confessional nas escolas.

“Entendemos que, em primeiro lugar, o ensino público foi criado no país historicamente a partir do século 16 com a chegada dos primeiros jesuítas, ou seja, por cristãos. No século 19, houve as primeiras escolas protestantes. É uma certa ingratidão histórica querer extirpar do ensino público o ensino religioso”, disse à BBC Brasil.

Santos acredita que não deve haver privilégio de nenhuma religião, mas admite que professores cristãos podem acabar sendo contratados com mais frequência nas escolas.

“O IBGE diz que mais de 90% da população é cristã. Então o recrutamento das religiões que representam o povo brasileiro estaria decidido aí. Não estou dizendo que só haveria professores cristãos, mas isso não seria problema, porque reflete a demografia do povo brasileiro.”

“Mas não seria difícil encontrar professores para religiões minoritárias em todos os municípios do país?”, indaga a reportagem. “É difícil achar professores para outras disciplinas também”, responde o jurista.

“Se numa próxima Assembleia Constituinte se decidir extirpar o ensino religioso, é possível. Mas não foi esse o modelo aprovado em 1988. Nesse sentido, nós precisamos resgatar a estabilidade do texto constitucional.”

Intolerância

De acordo com Carlos Roberto Cury, no entanto, o que estava em jogo no julgamento do STF era uma questão anterior à pergunta sobre “quem paga” pelas aulas de religião nas escolas municipais e estaduais.

“Esse debate é um termômetro do nível da sociedade brasileira de tolerância ao diferente. E esse nível está muito baixo”, afirma. Segundo ele, houve um aumento de episódios de intolerância religiosa entre crianças de escolas públicas nos últimos anos.

Até mesmo a Grande Loja Maçônica do Rio de Janeiro (GLMRJ) pediu para participar do processo, motivada por episódios de intolerância contra religiões africanas no Estado.

“Maçonaria não é religião. Por isso, não tem nenhum posicionamento favorável ou contrário a qualquer religião. Mas maçonaria defende as liberdades, e se posiciona contrária a qualquer preconceito e intolerância religiosa. O Estado é laico e deve permanecer laico”, disse à BBC Brasil o coronel da PM Ubiratan Angelo, mestre maçom, espírita kardecista e membro da comissão permanente de direitos humanos da GMLRJ.

Para Vianna, da Liga Humanista, a ideia de separar os alunos do ensino fundamental em turmas de religiões diferentes, mesmo que pontualmente, também pode ser um estímulo à intolerância.

“Temos que pensar que tipo de sociedade queremos construir. Um modelo em que a convivência religiosa só é possível com a separação ou um modelo em que as crianças aprendem desde cedo que existe uma diversidade de crenças e que elas podem conviver?”, indaga.

“Com um precedente desses, podemos começar a ter conflitos religiosos que não tínhamos.”

O debate do STF não incluiu as escolas privadas. O próprio ministro Barroso, relator da ação no tribunal, disse na primeira sessão que “as escolas privadas podem estar ligadas a qualquer confissão religiosa, o que é legítimo”.