No primeiro semestre, 50% das famílias recusaram doar os órgãos de seus parentes
Para 407 alagoanos, a vida é uma mistura de ansiedade e esperança, sempre na expectativa de receber a desejada notícia de que, finalmente, foi identificado um doador compatível. São as pessoas da lista de espera por um transplante de órgãos, setor em que Alagoas evoluiu muito e tem tido resultados positivos, mas, ainda, enfrenta o problema do número de doações inferior à necessidade.
É o caso do caminhoneiro Ronaldo Rodrigues, de 59 anos, um senhor franzino, que, segundo relata, perdeu a visão do olho direito, enquanto realizava a limpeza do pé de acerola, no quintal de sua casa. Até então, ele não fazia ideia de que um parasita havia se hospedado em sua córnea e que as implicações disso seriam as piores possíveis. “Em quatro dias, para ser mais preciso, já não enxergava mais nada”, contou.
Há cerca de um ano, por meio de exames, foi constatada que a única solução para o seu problema seria o transplante de córnea. Este procedimento consiste na realização de uma cirurgia onde a córnea doente ou danificada é substituída por outra saudável, proveniente de um potencial doador.
Mas, segundo Rodrigues, muitos passos ainda precisam ser dados até o dia da cirurgia, prorrogando seu desespero. “É difícil ficar em frente ao espelho, esperando, ansioso, o momento em que eu vou ter a visão de volta. É como se uma parte de mim tivesse ido embora, para nunca mais voltar”, desabafou, entre o medo e a ansiedade, tentando segurar o choro contido.
Nos últimos meses, a expectativa para encontrar um possível doador tem desencadeado diferentes reações emocionais em Ronaldo, como o receio, as dúvidas, a preocupação e a angústia relacionada à cirurgia e aos seus riscos. “O meu trabalho depende da visão, que agora está comprometida e, em consequência disso, estou parado. Essa espera tem gerado uma mistura de sentimentos tão diversos que ninguém pode imaginar. Não vejo a hora de dirigir novamente o meu caminhão, pois tenho garra para lutar e fé para vencer”, disse ele, emocionado.
Fila de Espera
A fila é, portanto, penosa, mas a coordenadora da Central de Transplantes de Alagoas, Daniela Ramos, destaca que a distribuição de órgãos, sob responsabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS), é democrática, igualitária e funciona bem, apesar da recusa das famílias representar um entrave à realização dos transplantes. A prova disso tudo é que 71% das famílias no Estado, em 2016, recusaram doar os órgãos de parentes que tiveram o diagnóstico de morte encefálica.
Já este ano, de janeiro a junho, o relatório da Central de Transplantes de Alagoas revelou que 50% dos familiares não autorizaram a doação de órgãos. A falta de comunicação do potencial doador à família, aliada a desinformação sobre o tema e os tabus relacionados a motivos religiosos são os principais fatores que levam a isso. “Podemos melhorar, embora estejamos no caminho certo”, afirmou Daniela Ramos.
Novas vidas
Somente no primeiro semestre deste ano, 77 transplantes foram realizados no Estado. Destes, 65 pacientes receberam novas córneas, enquanto 10 realizaram transplantes de rim e dois de coração. Em Alagoas, já são realizados os transplantes de rim, coração e córnea. Eles ocorrem na Santa Casa de Misericórdia de Maceió e nos Hospitais Arthur Ramos, do Açúcar e Chama, em Arapiraca. Contudo, 259 pessoas ainda estão na fila de espera para receber um rim, uma para receber um coração e outras 147 aguardam por uma córnea.
A coordenadora da Central de Transplantes de Alagoas explicou, ainda, que a destinação dos órgãos captados é definida com base em uma série de critérios, como o tempo em que o receptor está inscrito na fila e a gravidade de cada caso, sem falar na compatibilidade e na logística para o aproveitamento. “Não há favorecimento nesse sistema, o custo do transplante, com cirurgia e medicações, fica a cargo do SUS”, informou.
Desejo de doar deve ser informado à família
O diagnóstico de morte encefálica no Brasil está claramente estabelecido desde 1997, quando foi publicada a Resolução n° 1480 do Conselho Federal de Medicina. Por uma lei de 2001, a doação só ocorre com o consentimento familiar, mesmo que em vida a pessoa tenha manifestado o desejo de ser doador. Por isso, conversar sobre o tema com a família é fundamental. A decisão dos parentes no momento da entrevista pode ser ajudada por essa iniciativa. “Na maioria das vezes, tomar a decisão é difícil, mas inúmeras famílias se sentem desconfortadas com a doação. Outro ponto é que qualquer um de nós pode estar, em algum momento da vida, em uma das várias posições: de um potencial doador, de um parente ou de um paciente esperando por um transplante. A doação não mutila o corpo, e os trâmites funerários podem ocorrer normalmente”, frisou.
Com isso, coração, fígado, pâncreas e rins são transplantados com sucesso. Tudo acontece muito rapidamente, uma vez que o coração deve ser utilizado em menos de seis horas. O fígado e o pâncreas têm até doze horas para serem transplantados e os rins, pouco mais de 24 horas.
Segundo Daniela Ramos, cada um dos doadores é sempre comunicado à Central Estadual de Transplantes. Utilizando um sistema informatizado, a Central consegue em poucos minutos saber o destino dos órgãos. O sistema garante a alocação segura, ética e justa dos órgãos doados. A Central, ao receber a informação do doador, identifica os receptores e consulta as equipes transplantadoras a fim de que se organizem as cirurgias de retirada e os transplantes. Tudo isso no prazo de seis horas.
Eticamente, o anonimato dos doadores deve ser preservado, assim como a privacidade dos receptores. As famílias não são informadas sobre quem receberá os órgãos doados. “Por isso, conversar com os familiares e apoiá-los, independente da decisão final sobre a doação, pode ajudá-los na vivência do luto. Isso porque, eles passam a entender que a doação é um bem para a sociedade, pois só ela possibilita a realização de transplantes, podendo ser uma forma de consolo”, concluiu.